Foi assim…consegui juntar pedaços de memória e juntar todos para dividir meu tempo como se eles tivessem algo entre si, talvez o suposto leitor possa entender…
AGROVILA
Logo que me matriculei no Ensino Fundamental, encontrei um nome para a Fazenda dos Bambus: agrovila. Era um modelo econômico de aglomerados em roças. Os agregados vinham com as famílias e moravam ao redor, ou seja, construíam casebres e famílias, trabalhavam na vila, abriam estradas para animais, almoçavam em cozinha própria, as cozinheiras eram as esposas dos trabalhadores, os meninos viviam nus ou não agarrados às saias de suas respectivas mães.
VIOLAS CHORAVAM
Aos sábados, lá pelas 16 horas, o trabalhador largava sua ferramenta (foice, enxada, enxadão, serrote, chicote, outras pequenas peças) e ia se aglutinar na varanda da fazenda. Antônio do Inhô, o inventor de palavras, fazia os pagamentos semanais usando uma mesinha colocada no início de corredores que davam para os quartos.
Litros de cachaça cheirava à “Bambuína”, a marca sagrada criada pelo nada de marqueteiro que havia na época. Cada um raspava a garganta a seu movo nas provas das bebidas ao som de violas e violões, cada um usando um copinho de vidro ou cuité. Enquanto isso triunfava o choro das violas, umas três, a cada minuto alguém um cantava música sertaneja, fosse ou não conhecida dos violeiros. Havia os compositores também, que tornavam as melodias muito tristes. Lembravam também os nomes dos autores ou cantores, como Cascatinha e Inhanha, Pedro Bento e Zé da Estrada e outros mais. A melodia “Mula Preta” era repetida de sábado a sábado. Só para deixar de dizer que nem tudo são flores, havia sempre uma briguinha correndo por fora, coisa de ciúme entre namorados ou maridos, mas tudo chegava a ocorrer para o lado do “deixa disso”.
MAGDA E ANTÔNIO
Coração aberto para os visitantes. Todo santo dia, no mínimo de seis a uma dúzia de pessoas almoçavam ou jantavam com o dono da agrovila, Antônio Ferreira de Morais, ou Antônio do Inhô das Pintas. Magda Sana de Morais, irmã de minha mãe, tornou-se uma mulher envergada, viveu mais de 90 anos, mesmo enfrentando fogão e forno a lenha diuturnamente. Antônio era mais um homem de negócios, administrou como pôde durante anos a fio, a grande fazenda, cuja história merece um filme. Magda, “bonita sem parar”, diziam as pessoas, tinha muito ciúme do marido, não tanto galã, a história merece ser contada, só não será agora por completo.
MOÇAS BONITAS
Numa tarde-noite, jantaram na fazenda um fazendeiro, sua esposa e três moças muito bonitas. Uma delas era amiga de duas irmãs, filhas do casal. Estavam num jeep com capota de aço, veículo muito chique na época. Lá pelas tantas 21 horas, quando terminaram o prolongado jantar, os visitantes se levantaram para o retorno a Morro do Pilar, onde moravam.
Tudo depois do farto jantar, com não menos de doze iguarias, depois as sobremesas e os cafezinhos. Desceram a escadaria da varanda, os homens apalpando suas barrigas, a comida passava de delícia. Foram conversando futilidades, como era praxe, devagarinho entraram no carro, caprinharam nas últimas despedidas e partiram.
Quando retornamos — Tio Antônio, Fernando, filho de minha tia-avó Lelena, que morava na França, o dono da casa chamava para um bate-papo nos bancos na varanda. Iniciou a conversa assim:
— Meninas bonitas, hein? De qual delas vocês gostaram?
Fernando respondeu:
— Pra mim, a mais bonita é a moreninha de vestido estampado, lenço na cabeça.
E para você, José?
— A baixinha faz meu tipo.
— Esquece a sua namorada baixinha, rapaz, ela nem está se lembrando de você — disse tio Antônio, complementando com a sua preferência:
— Agora sou eu o entendido das meninas. Eu achei as três as mais bonitas, “treinheiras”. (risos gerais e quase intermináveis).
TILILITO E MÁRIO MAGNO
Mário Magno era meu tio-avô. Lilito, meu tio, irmão de minha mãe. Mário, nascido em Saramenha, distrito de Ouro Preto, irmão de Vó Maria. Ele queria conhecer a Agrovila dos Bambus. Boa combinação com Lilito, que namorava Áurea, filha de Dona Maria, esta filha de Seu Alta. Partiram ambos, cada um num animal: Lilito no burro “pelo de rato” e Mário na “mula queimada”.
No entroncamento da estrada (só para cavalos), Lilito resolveu cavalgar à direita, a cerca de dois quilômetros da fazenda de Altamiro. Orientou Mário Magno a seguir adiante, com explicações bem ajustadas. Mas ocorreu o imprevisto: Mário disparou em direção a Santo Antônio quando topou com uma boiada.
Foi trágico. A mula queimada, diante de tantos bois, fez rodinhas, rodas e rodões e disparou, levando seu cavaleiro de volta a São Sebastião. “Pronto, cheguei!”, pensou o Magno perdido. Nisso Vô Seraphim Sanna chega à janela de sua sala de leitura e vê aquele desarranjo: mula suada, Mário exausto, ambos vieram de volta ao ninho.
De Mário Magno, antes de todas as gozações, coube a simples exclamação:
— Será aqui a casa da Magdala?
Meu avô estaria rindo até hoje, não tivesse partido para as mãos do Senhor em 11 de setembro de 1974.
ANTÔNIO DA EVA
Era um rapaz como eu, de uns 17 anos por aí. Estava corrido de Conceição do Mato Dentro, onde morava com a mãe. Tinha parentes para os lados de Santo Antônio do Rio Abaixo, seu esconderijo. Corria de um “sogro” bravo para não ter que se casar sem ou morrer no bico da garrucha. Eu, muito menos doido do que ele esperava completar 18 anos para tornar-me empregado de alguma coisa.
Tinha percorrido Belo Horizonte, em vão, vaguei pelas redondezas à procura de nada, ou de ver o tempo passar e chegar aos então desejáveis 18 anos. Em irretocável caminhada pelos morros da região, fomos impulsionados por convites de professoras da escola de Santo Antônio e apeamos dos animais.
Amarramos as nossas conduções num toco próprio, chamado isso mesmo — toco — e fomos recebidos na escola. Para quem acha que éramos caras de pau, ponham cara de pau nisso. Fazer o quê na escola de belas professoras se nem tínhamos assunto para conversar?
Contudo, elas tinham, eram alegres e exuberantes. Convidavam-nos a reza da noite na igreja à noite com a seguinte ordem: primeiramente rezar, depois participar do show de leilões. As professoras falaram numa ceia que seria leiloada. Na guloseima havia tudo o que se pudesse imaginar: uma leitoa assada com acompanhantes (arroz, tutu, linguiça, salada, cervejas, cachaça, vinho etc. etc. etc.). E elas fariam companhias

LEILÃO COM GOSTO DE FOME
Estamos no adro da bela igreja de Santo Antônio, segundo Antônio da Eva, seu padroeiro, mesmo com um sogro bravo atrás dele por “desencaminhar” a moça mais bonita que existia em Conceição do Mato Dentro. E ele se gabava disso, eu acreditava e tinha o meu protetor, que é sempre São José.
Antes de aprofundar-me no assunto, eis que havia algo bem secreto dentro de nós — pelo menos em mim —não tínhamos sequer um mísero centavo no bolso, nem me lembrava mais quando vi uma moeda qualquer tilintando nas tais algibeiras. E com mais caras de pau, entramos no leilão de uma ceia que seria devorada por, no mínimo 15 pessoas. Não me lembro da moeda daquela época, mas acho que o cruzeiro e os seus centavos. Mal tínhamos virado a serra dos tostões.
Antônio, mais doido que eu, repito, inaugurou um lance, verdadeiro absurdo, muito alto — oitenta reais — que ninguém imaginava começasse assim. Ele, o Tone, já me dizia bem às alturas as suas artimanhas a respeito daquele momento: “Eu só tenho duzentos reais aqui, você tem quanto guardado no bolso?”
Tremi dos sapatos à cabeça, mas imaginei a sua estratégia e falei bem mais alto: “Tenho uns trezentos e cinquenta, mas não posso pagar mais que quinhentos, é o dinheiro que tenho guardado com tio Antônio do Inhô”. “Então dá, resmungou ele, mostrando ser o vencedor das disputas.
Havia uma turma de rapazinhos que ouvia as nossas conversas fiadas e começaram a forçar preços altos na ceia acho que com o mesmo motivo nosso: estariam sem um centavo guardado. Corria o leilão na faixa de seiscentos reais, alta oferta, e um deles gritou: “Agora a ceia é nossa mesmo, quero ver se esses “bostinhas” têm como nos apanhar!”
Em seguida, falei bem alto para o adro da igreja ouvir: “Vou ali ver quanto temos no alforge da mula queimada”. De longe gritei ao Antônio: “Pode fazer um lance de no máximo novecentos cruzeiros”.
E montei disparado como um bandido de faroeste. Antônio viu e ouviu, e fez o mesmo Naquela hora, mais ponderado: rachamos fora, com fome e medo de sermos humilhados.
CEIA VERDADEIRA E GRÁTIS
Melhor que a ceia foi o mexido que tia Magda nos preparou quando chegamos, ofegantes. A confusão só terminou no momento em que Antônio soube que o suposto sogro estaria vasculhando as proximidades à sua caça.
Rachou os pés para o Nordeste do Brasil e de lá correspondemos até a sua morte. Trágica, por sinal, o acontecimento de que não me esqueço. Não foi alcançado, só a morte o flagrou. Senti muito.
(CONTINUA)
José Sana
Em 5/12/2025
Ima












