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O SAPO DA PONTE SÓ ERA UM SOM

O Sapo está traumatizado desde o período de passagens de caminhões modelo carretas, que faziam o transporte de equipamentos pesados da mineradora Anglo American de Belo Horizonte e Salvador para Conceição do Mato Dentro.

Não era ouvida, sequer uma abstrata figura, mas adorava ser ouvido pelo entorno do córrego, ele coaxa a partir das tardes calmas e varava a madrugada com seu barulho nostálgico. Os caminhões aceleravam muito na manobra em frente ao epicentro das ruas São Vicente, Bonfim e São Geraldo.

Sobre a quebradeira na igreja, seu posicionamento é “Não”, porque com a barulhada das obras incomodaria a vizinhança. Depois, poderia haver alguma atração de público para jogar búzios e baralho, o povo é chegado na jogatina, todo mundo sabe disso.

VALETE DE ESPADAS TEM BRAVURAS

Uma figura do baralho, Valete de Espadas, é uma palavra derivada do francês “valet’, que designa um empregado doméstico masculino, subordinado a alguém, normalmente ao senhor da casa. Apesar de ser  uma carta de mudanças, de clareza frente aos desafios, inteligência e pensamento claro e lógico, nosso personagem se contorcia em raiva expressiva quando alguém gritava, às escondidas, a expressão “Valete de Espadas”.

Proveniente ou morador da Banqueta, zona rural com certeza, a carta não podia ser jogada nas escadarias da igreja e seria contra quebrar tudo, por existir a possibilidade da construção de mesas para jogatinas.

“Sou contra”, disse, e fim de papo.

GODOZINHO, O PROFETA PORNOGRÁFICO

 

 Não confundam Godozinho com meus parentes — o primo Godofredo, que mora em Ferros; o tio, em Belo Horizonte e o avô Godó, papo amarelo, que distribui água, luz e ornamenta as festas com banda de música. Agora, tratamos de outro personagem, que chegava da zona rural para aprontar. Os maridos puritanos não apreciavam o vocabulário dele e cuidavam de afastá-lo.

Cabeça branca, estilo lorde inglês , bem penteado ou assanhado, o forte dele, no entanto, era prever a morte de alguém.

Ele via um velho, ou velha, na porta ou janela de suas casas e fazia uma previsão da morte dele, usando os seguintes termos: “Fulano de tal, brevemente…” e imitava o sino da igreja que badalava pelos “chamados de Deus”. Para azedar, dizia que um ou outro ou uma ou outra “estava se queimando no inferno”.

A Praça São Sebastião não chamaria a sua atenção, a menos que alguém estivesse rodeando a obra construída pelo padre Raul de Melo. Ele detestava padre e era, evidentemente, um  completo ou perfeito ateu, contra a mexida no que estava bonito e fincado como patrimônio.

UM GAMBÁ QUE VALE OURO

Bebia, bebia, bebia. Encharcava-se até babar. Em alusão à própria cidade autodenominada Gambá, era chamado de Zé Gambá. Sua temperatura com a molecada variava com o grau de álcool que ingeria. Meio bêbado estava no ponto de dar a sua aula de filosofia. Dizia sempre, naqueles momentos, que “um gambá morto vale mil contos”, ou “vale mais que qualquer um que não bebe”.

As meninas da cidade adoravam ouvir as suas palavras mansas e moles. Ele as observava e, mais tarde, dava a sua sentença: “Essas moças daqui num têm regra!”

A quebradeira para ele seria o fim do mundo. Loriano era contra qualquer alteração no patrimônio público histórico e cultural.

ESTROGILDO, O TREM QUE APITA LONGE

O nome é quase estranho — Estrogildo — mas o apito do trem muito conhecido, levado à literatura pelo significado de seus gestos: olhava de um lado para outro, parece que buscando inspiração, apertava o nariz já um tanto “escarrapachado”, cujo verbo nada tinha a ver com nariz chato. O que era do agrado das pessoas vinha a seguir no barulho, como de uma máquina azucrinando na curva.

“Apita aí, Estrogildo!”, gritava a garotada e ele fazia um barulho engraçado. Por isso, apreciava ficar no ar, no alto de uma escadaria e, então, preferiria que a altura fosse mostrada, esta a sua visão da obra destruída.

JOÃO LAGOA, PENSADOR E FILÓSOFO

A cachaça fez bem e mal ao senhor João Ferreira Neto, minha persona preferida. Adorava sentar-me ao lado dele para gravar, na memória, tantas análises do mundo, quase sempre hilárias, mas, evidentemente, cheias de sabedoria.

“Quem tá bêbado, bebe mais” — esta a sua justificativa para  pedir mais uma dose nos botecos da cidade.

A descrição dela é assim resumida: João Lagoa, ao beber e alcançar os primeiros efeitos do álcool, personalizava-se como um fazendeiro muito rico e que comprava e vendia, com relativa facilidade, de acordo com o seu grau etílico propriedades e animais (gado, cavalos, burros). No teor de suas análises de saídas de um bate-papo, dizia sempre: “Querem saber onde está João Ferreira Neto?  É só dizer: ‘tá pra trás acertando negócios!” João Ferreira Neto era o seu nome próprio, de cartório e pia batismal.

Nunca se exasperava com os meninos que saíam atrás dele pelas ruas. Alguns dos acompanhadores às vezes jogavam pedras nele. Ele revidava. Vinha a polícia e o prendia.

Em São Sebastião tinha uma cadeia simples, um quarto apenas, local em que era jogado o “criminoso”. As famílias, contritas, levavam-lhe um prato de comida. Ele nem olhava, mas o portador lhe pedia: “Come, João!” Ele sequer dava resposta, ou soltava um troco da seguinte forma: “Homem enfezado não come!”

De todos os meio malucos da cidade ele se distinguia por andar depressa com a cabeça inclinada, falando sem parar frases alusivas ao homem rico, o próprio. Resumindo: tinha complexo de riqueza, que usava como trunfo para externar felicidade.

Ele não tinha um centavo nos bolsos, que pareciam furados. Certa vez, quando pediu que lhe pagassem uma bebida, quem negava lhe afirmava: “Cadê o seu dinheiro?” Lagoa retrucava imediatamente: “Fazendeiro rico não anda com dinheiro no bolso!” Sempre repetia as expressões finais assim: “… não anda com dinheiro no bolso, com dinheiro no bolso, no bolso, no bolso!”

Como já disse, eu parava para ouvir as suas frases, sempre as publicava no jornaleco “Folha Sebastianense”. Mas um certo dia, ia eu sozinho para Santo Antônio do Rio Abaixo. João Lagoa estava assentado na estrada. Desci de meu animal e fui conversar com ele, mas João, totalmente diferente e triste, não tinha bebido um só gole de cachaça, não dava atenção a mim.

Insisti em arrancar-lhe uma só palavra, mas ele me olhava com desdém. Perguntei-lhe: “Você comprou a Fazenda do Fonseca?” Ele me olhou ainda mais triste e me passou um sabão: “Que é isso, moço, deixe de ser bobo! Eu não tenho nada, sou um pobre-coitado!”

Montei o meu animal, a Mula Queimada de meu Avô, e zarpei, mais triste que ele. Tempos depois, talvez uns meses apenas, recebi a notícia de seu falecimento. É claro que fiquei com pesar quanto ele naquele dia, pois o estimava pelo tanto de frases que me distraíam, pela sua filosofia cheia de razões. Quem me deu a notícia trágica foi  Zé Eva, que morava na Fazenda Fonseca, e também gostava de uma bebida.

Perguntei ao Zé o porquê da morte de Lagoa. Ele respondeu simplesmente assim “Parou de beber”. “É claro que se morreu, parou de beber”, retruquei. Mas ele insistiu comigo: “A parada de beber foi o motivo de sua morte!” Fiz que entendi e pensei comigo mesmo: Deus o tenha.

Acredito hoje que João Lagoa jamais aprovaria a derrubada da escadaria da Igreja Matriz de São Sebastião do Rio Preto. Ele simplesmente diria assim: “Comprei a escadaria que é pública. Se pensam que fazendeiros ricos só compram fazendas estão enganados, compram igreja também”.

José Sana

Em 17/09/2024

Imagens: redes sociais

NS
José Sana, jornalista, historiador, graduado em Letras, nasceu em São Sebastião do Rio Preto, reside em Itabira desde 1966.

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    Mary Sana
    Mary Sana
    2 months ago

    Sensacional! Chamou atenção a redação bem humorada, principalmente quando menciona o personagem João Lagoa: homem simples, pobre, afeito ao álcool, porém rico de sabedoria.

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