Meu amigo J.F.S. me deu uma aula sobre as chamadas assombrações. Ele acredita nelas, sim, mas explica: “Não existem mais; eram almas perdidas e penadas que, com a evolução da natureza, subiram de plano no astral e não ficam por aí mais enchendo a paciência da gente”. Por extremo desconhecimento do assunto, ou melhor ignorância mesmo, aceitei a sua justificativa. Ele se baseou até em Machado de Assis, que aborda muito em suas obras, o virar do relógio à meia-noite, quando “as vozes tremulam no além”.
Ao abordar este tema, por influência de uma amiga — M.F.M.F.M — explico o porquê de não mencionar os nomes por extenso: considerando o que afirmou J.F.S., as assombrações chisparam, ou melhor, racharam fora do mapa. Evoluíram no contexto.
O causo que vou contar é dos idos de 1954, vou também citar os locais — cidade e nomes da zona rural — neste rápido histórico a que chamo de “O Causo M.B.N”. E lá vão barulho, luzes, quebradeiras e zoadas esquisitas.
A história começa assim: o senhor M.B.N. morava na localidade da Barra do Rio Preto, para lá da confluência de outro local, a famosa Banqueta, onde residia o fazendeiro J.V.S. Também ele era fazendeiro. Nas horas vagas dava-se a jogatinas mais por distração. Assim, ao entardecer de todo sábado, arreava seu burro cor pelo de rato. Sendo inverno, usava uma capa marca “Ideal” dobrada na sela e, para não dar chicotadas no animal, punha esporas afiadas no calcanhar da botina, ou bota.
Chegava na rua da Vila chamada São Sebastião do Rio Preto e manjava qual o melhor “cassino” lhe interessaria daquela vez, o mais animado: tinha T.G., P.J.F., L.G.A. e outros. Amarrou o burro encabrestado num toco próprio, instalado na praça central e bambeou a barrigueira para aliviar o fôlego do animal, coitado.
Nesta noite, escolheu L.G.A., tendo como seu destino numa cadeira no fundo da venda. A jogatina, que valia muitos poucos réis, infiltrou-se pela calada da noite até por volta de uma e pouco da madrugada. Já havia passado o horário de terror descrito por Machado de Assis, a famosa meia-noite de terror.
Os amigos de pôquer de M.B. — vamos simplificar um pouco o nome do fazendeiro jogador — estranhavam a saída do companheiro muito cedo, mas não insistiram muito. Como dizia meu avô, “quando o matuto coloca o instinto para funcionar, ele deve estar certo”. E lá se foi o M.B. montado no seu burro pelo de rato, assim ele o chamava, retornando à fazenda.
Quarenta minutos depois, de galopada, estava ele no alto da porteira da divisa de seu terreno. E, lá em baixo, avistava, assustado, sua casa, toda iluminada, como se tivesse luz elétrica, os focos piscando como em boates não avermelhadas, mas claras; apagavam, acendiam, incessantemente. M.B.se aproximava de lá, à medida que ia ouvindo barulhos e mais barulhos esquisitos, vasilhas sendo jogadas para cima, copos de vidro quebrados, gritos dos familiares, esses eram íntimos. M.B. sempre dizia que assombração não existia. Pressentiu que a sua casa estivesse sendo assaltada, mas não conhecia nada semelhante a esse tipo de ação de bandidos naquele tempo. Uma multidão de pensamentos assaltava, sim, mas a mente, o coração ia acelerando à medida que foi apeando, amarrando o burro, vendo e ouvindo aquela arruaça acontecer até na varanda.
Subiu as escadarias enquanto a mulher e os filhos vinham correndo ao seu encontro, pegavam-no, chorando, trêmulos, olhos rútilos, alguém segurando uma lamparina trêmula como as pernas de todos.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou M.B. aos berros.
— Assombração, assombração, alma do outro mundo, alma do — e a mulher se engasgou de vez, soluçando…
M.B. caminhou para a cozinha, onde parecia ocorrer a maior algazarra: quebradeiras, panelas caindo, frigideiras tilintando, colheres e garfos batendo no sótão, telhas sendo destruídas, copos e cristaleiras despedaçando-se. Todos agarrados ao chefe da casa, chegaram à cozinha, tudo no lugar certo, nada de objetos quebrados ou fora do lugar.
Naquele momento, a farra se transferiu para os quartos, as salas de jantar e de visitas, quadros pareciam quedarem-se ao chão, despedaçarem-se, tudo se agitando, até o burro, lá fora rinchando, arrebentou o cabresto, correu para o paiol.
O agora, já meio calmo fazendeiro, resolveu buscar o terço, todos na sala, tudo no lugar certo, começaram a rezar, puxados por ele, eram católicos, ou melhor, são católicos, a família o segue religiosamente até os dias atuais. Pediram a Deus por aquela “alma perdida”, M.B. já acreditava em coisas do além, estava convencido disso, plenamente bem informado por ser testemunha ocular e até com um acréscimo: sempre ouvira falar de assombração que aparecia para um só, agora era para a família inteira, não botar dúvida.
Quietos na sala, barulho na cozinha, os meninos dormiram no colo da mãe, M.B. tomou uma atitude e soltou uma frase fatal quando o dia começava a raiar:
— Pelo amor de Deus, diga o que você quer, sua alma sofrida, penada! Quer uma missa? Quer que mande celebrar uma missa para você descansar-se em paz?
Repetiu a frase várias vezes até que, finalmente, quando o dia clareava, uma voz sôfrega saiu pelos ares, soltando uma resposta bem compreendida assim:
— Clé… Clé… Clé… Clé…Clé… Clé… Clé… Clé… Clé…Clé…
M.B.N. entendeu claramente como “quero”… “quero”… “quero”… e não pensou duas vezes: montou de novo o burro pelo de rato e voltou para a Vila. Foi direto à casa do padre. Era domingo, o padre estava na igreja. Mas ele conseguiu falar com ele na sacristia e lá encomendou a missa que ocorreria naquele momento, 8 horas da manhã. Para sua paz, assistiu, de espora na botina e chicote na mão, o pedido pela tal “alma penada” que assombrou a sua casa durante uma noite inteira.
Foi este “O Causo M.B.N”. Esqueci-me de dizer que o padre se chamava R.M.
José Sana
Em 15/07/2021