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Era 1961, férias do primeiro semestre, e acabava de chegar a São Sebastião, vindo de Belo Horizonte, onde estudava no Colégio Anchieta, turma de Medicina, já pensou? Estava usando óculos, com ‘grauzinho’ pouco significativo. Acredite quem quiser, era uma forma de garantir desculpas pelas notas vermelhas que estavam se acumulando. Só me destaco mesmo em Português, História e Geografia e tremo em cima dos sapatos quando me falam o nome deste idioma, Inglês. Tenho um professor, Pedro Souza, que já me despachou e me aconselhou a desistir da língua saxônica.

 

O ASSUNTO DE HOJE

O tema deste texto é outro. Usei o parágrafo anterior como citação de meu próximo livro, “Direito de Ouvir”, que será lançado em breve. Então, vou ao tema que nos interessa agora. Como sempre curioso, mexo nas gavetas de meu pai, ele acostumado a escrever tudo, da sua história de vida aos entreveros com um ou outro cidadão.

 

E, de repente, deparo-me com uma forma de comunicação chamada “circular”, assinada pelo pároco local, padre Raul de Melo. Tratava-se de uma decisão, unilateral, sem mesmo apelação, de derrubar a histórica e culta Igrejinha de Nossa Senhora do Rosário, templo de existência anterior à Igreja Matriz, essa erguida pelo Cônego Manuel Fernandes Madureira e padre Joaquim Higino de Almeida, no alto da subida chamada Morro do João Paulo.

Era assim..

HIROSHIMA E NAGASAKI

 

Ora, ora, ora, eu tinha apenas 16 anos, mas me incomodei com o teor da missiva endereçada ao povo de São Sebastião do Rio Preto  pelo padre. Imediatamente, convoquei os comandantes que se reuniam no nosso “front de guerra”, exatamente o adro da igrejinha abandonada. Os tenentes-coronéis eram José Vieira Reis, ou Teia do Roque; João Guadalupe de Almeida, ou Joãzinho Pão de Queijo, ou Kaki; José Flávio de Almeida Dias, o Zé Flávio; e eu. Esse penúltimo, o primeiro sobrevivente, o segundo sou eu.  A convocação foi atendida e passamos o resto da madrugada discutindo o que faríamos para evitar a tragédia anunciada pelo vigário local.

 

O primeiro ato de nosso protesto foi o bombardeio nas ruas. Todas as vias, exceto o Morro do João Paulo, que era calçado com pedras chamadas “pés de moleque”. Terra pura, de outro morro, o do ‘Mingôla ’estendido até a rua do Noé, passando também pelo Bonfim, onde se caminha para ir ao cemitério local. Emendamos mais de quilômetros de estopins, entremeados com bombas chamadas de “12 tiros”, que “furtei” na loja de meu pai sem que ele percebesse.

 

Madrugada adentro, escolhemos a meia-noite para atacar, quando “os fantasmas se agitam”, de acordo com o mestre Machado de Assis. Arrebentamos o arraial com um tiroteio antológico, digno de serem denominados Hiroshima e Nagasaki. Não houve uma alma que se negasse a ficar na cama. Nosso amigo Somiro (Clodomiro Duarte Lage), que amava sentar-se na porta da igreja  quando havia lua cheia, comentou: “Oh, moço, até os mortos levantaram de suas covas para ver que festa era aquela”.

 

PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL

 

Não foi festa, mas apenas um aviso de que começava a ocorrer a ‘terceira guerra mundial’, considerando a segunda encerrada em 1947 com o Tratado de Paris. Começamos a bolar a segunda estratégia para evitar a derrubada do templo. De início, a avaliação das riquezas que precisam ser anunciadas para ser cobradas e são, em nossa listagem, o seguinte: dois sinos de barulho inconfundível, que chamam a atenção da comunidade para o momento mais importante da celebração litúrgica, a consagração do Pão e do Vinho, e se tornam o Corpo e o Sangue de Cristo. Havia outro valor deles, foram doados por Dom Pedro II, no mesmo rol de entregas feito em Brejaúba e Santo Antônio do Rio Abaixo.

 

Ah, muitas outras importâncias anotamos e nos foram fornecidas pelo ilustre conterrâneo Dr. Sebastião Ferreira de Oliveira, então presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE). Escreveu ele artigo publicado no nosso jornaleco “Folha Sebastianense”: “Tínhamos pinturas valiosas de discípulos do Mestre Ataíde (Manoel da Costa Ataíde) estampadas no teto do templo e um relógio do século XIX, de parede, alemão, marca R.A, mostrador com algarismos romanos, caixa de madeira, além de imagens indescritíveis”. Esse bem material ficava dependurado na sacristia e determinava o tempo de início e término das cerimônias.

 

UMA  AÇÃO QUE ADIOU A DEMOLIÇÃO

 

Preparamos a ação mais importante. Como é sabido, estávamos na praticamente Idade Média e naquele tempo acreditavam fantasmagoricamente na existência de  assombrações. A Rádio Tupi do Rio de Janeiro exibia, às sextas-feiras, dias em que os fantasmas machadianos mais se agitavam, o programa “Incrível, Fantástico, Extraordinário”. São Sebastião do Rio Preto tinha sido palco de inúmeras cenas assombradas. A mais destacada ocorrera com o fazendeiro Manoel Bispo Nascentes e sua família, que tinham sido alvos de ataques espectrais  durante toda a madrugada de um dia de 1960.

….ficou assim.

Daí, a nossa ideia que consideramos genial. Conseguimos dezenas de metros de fios de “nylon”, portanto resistentes, para amarrar nos dois sinos que badalavam um tom grave e agudo, alternadamente. As batidas eram fúnebres, que mais assustavam. O local para localização do sineiro era uma janela do sobrado de meu avô Seraphim Sanna.

 

Mas havia uma tarefa importante a cumprir: o sineiro, que era eu, teria de subir para o casarão por uma janela do segundo andar e ficar invisível. Para acesso à janela Teia do Roque buscou uma escada que ficava disponível na porta da carpintaria de Benedito Buty, o nosso Nelson Mandela, fisicamente idêntico, embora não tivesse sido, naquela época, muito conhecido.

 

Pronto. Estava preparada  a forma de amedrontar a população e que se resumia no seguinte aviso, feito boca a boca, durante mais de um mês: “As Almas do Purgatório não querem que derrubem a Igrejinha do Rosário”.

 

Todas as sextas-feiras, novamente lembrando os romances machadianos, os badalares quebravam o sono de cada morador local. No dia seguinte, os comentários corriam de casa a casa. Até que, finalmente, descobriram o quarteto que comandava o espetáculo. Teia do Roque, por si só, decidiu, então, usar as vestimentas roxas que são  guardadas no porão do cemitério. Além desses apetrechos, havia um gancho para pegar caixão e esticá-lo ao fundo da sepultura. Zé Reis usava-o como forma de tornar barulhenta a sua ação, e amedrontar os que defendiam a derrubada da igrejinha.

 

Fica, então, esclarecido, o porquê nos chamavam de “capetinhas” e “encapetados”: tínhamos um objetivo sublime que era garantir a preservação do templo histórico, entre outras causas que defendíamos. Na época, o povo morria de medo de padre e citava a expressão “Deus me livre da praga de padre!”

 

Além das bombas de fim de guerra e da badalação de sinos, soltamos um bando de morcegos que habita a torre do templo. Eles migraram da ameaça de morrer ouvindo rezas para as casas que nos xingavam pela ação pouco simpática, mas necessária.

 

Zé Flávio e eu chegamos a frequentar um terreiro espírita em Belo Horizonte, porque não arrumávamos  empregos e  as pessoas atribuíam ser essa a “praga de padre” que algum vigário nos rogou.

 

A FALTA DE PIEDADE  FUNCIONOU

(Antes era assim)

Ficamos fora de nossa terra quando completei 18 anos. Empreguei-me na antiga Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira (CSBM), em João Monlevade, em  maio de 1963. Um mês depois recebi uma carta de um partidário do padre, comunicando-me que “estamos derrubando a sua igreja e construiremos outra na Vila Bom Jesus”. Acrescentou, para  intimidar-me, a frase: “Não implique mais porque agora está tudo resolvido”. Tudo resolvido entendi que a Igrejinha fora ao chão e meu emprego saiu.

 

Contei esta história da demolição de nosso Rosarinho para lembrar que agora parece quererem atingir a Igreja Matriz. Esses são acima de demônios e são chamados de capirotos. Fico a perguntar de mim para mim: minha sina é evitar a queda de igrejas? E perder as paradas? Será que vou perder mais uma? Advirto: não será somente eu o perdedor, mas é a religião, a história, a cultura, a tradição, o povo.

 

Querem e querem e insistem em convencer a Promotoria Pública que, para construir rampas para deficientes físicos é preciso arrebentar as praças que circundam o templo dos lados direito e esquerdo (atrás, não). Olhem, faço uma ameaça: não desistirei. E tenho centenas de filhos de São Sebastião pensando assim. Mais ainda: homens, mulheres e crianças, vivos e mortos.

 

CUIDADO, ESSA IGREJA PODE IR AO CHÃO!


                                                                (Agora está assim)

Viventes humanos sabem como foi fincada a estrutura da Igreja Matriz de São Sebastião do Rio Preto? Sabem que a casa religiosa foi erguida em 1890 por aí? Sabem que, a exemplo de grande parte das casas da cidade, a igreja não tem alicerce seguro? Sabem que a fraqueza do alicerce foi testada recentemente, quando a empresa mineradora Anglo American usou as ruas para passagem de seus caminhões? Sabem que houve um grande alvoroço na cidade porque as construções balançavam seguidamente na passagem de máquinas e veículos? Sabem que algumas casas foram até indenizadas? Sabem que ocorreram dezenas de reuniões e a Anglo American chegou a tomar mais uma  providência: reduziu o trânsito sequente para evitar pânico na cidade? Tudo isso que relato neste parágrafo foi ocorrência recente, de cinco anos passados.

 

AO MINISTÉRIO PÚBLICO E AO JUIZADO

 

Agora, espero  que a Promotoria Pública de Ferros e a Justiça de modo geral considerem o seguinte: não troquem o certo pelo duvidoso. Há pouco tempo, um templo religioso desmoronou-se em Dores de Guanhães, em nossas proximidades.  Até hoje não o reergueram e sequer sabem quem o destruiu. O verbo evitar é um bom conselho e só cabe no entendimento de pessoas inteligentes, principalmente as que nos representam na Justiça. Se o templo atual já treme, é um ato de prevenção. A expressão “balança mas não cai” pode ser alterada, desmoronar como um jenipapo.

 

CONCLUSÃO

 

Concluindo, fui testemunha ocular e presencial, além de meu primo José Flávio, da impostura usada em 1963 e a desnecessidade de demolir um templo histórico, o  Rosarinho, rico e fantástico.

Igreja do Rosário

Estou traumatizado até hoje, mesmo 61 anos depois. Não façam São Sebastião do Rio Preto perder mais uma parte de suas riquezas.

 

Onde podemos encontrar a cabeça de quem é favorável a esse absurdo? Não para que possamos cortá-la, decepá-la, pendurá-la nos postes como fizeram com os inconfidentes mineiros. Mas para que possamos pedir, de joelhos, se preciso,  e jurando eternamente que não vamos deixar essa caravana nos destruir. Ajoelhados, prometemos lutar. Pedimos, pedimos, suplicamos, solicitamos. Mas os morcegos jamais sossegarão.

 

Pelo amor de Deus, que o nosso patrimônio seja conservado e preservado. Amém.

 

José Sana,

jornalista, professor de letras e historiador (pós-graduação em História do Brasil e Patrimônio Histórico e Cultural)

Fotos: Arquivo e colaboradores (Dra. Leone Valério, Sibele Almeida e redes sociais)

NS
José Sana, jornalista, historiador, graduado em Letras, nasceu em São Sebastião do Rio Preto, reside em Itabira desde 1966.

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