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* Fernando Martins

Sempre que inicio o dia, faço questão de varrer a área onde trabalho. Mais que um t.o.c. de virginiano, é um ritual de purificação que me faz começar o dia mais leve. No fundo, acredito que o conceito de higiene é bem mais amplo. Ele colabora, no meu caso, com um tipo de reorganização do pensamento e do corpo para a chegada da inspiração e da disposição. Portanto, é tarefa para eu mesmo fazer. Com prazer, claro!

E vejam só como funciona… Sempre tem um serzinho que me acompanha nessas rotinas como sombra. A Lilly. Companheira de uns 12 anos, idosa, quase cega e manca por causa de tumores. Entre uma passada e outra da vassoura, ela quase sempre obstrui a dança frenética da piaçava.““

—Sai pra lá, Lilly! Tenho pressa e muita coisa por fazer hoje! (Segundona é dureza!)

Qual nada. Ela segue no tempo dela, como sempre. Aliás, os schnauzers têm essas características teimosas. O que mudou é a lentidão dela.

Daí, fiquei imaginando… ora, ela tem mais razão que eu. Qual é o sentido dos idosos terem pressa? Lembrei da minha avó, quando passou dos 96 anos, com a calma de uma monja budista, era capaz de desacelerar qualquer um só com um: — O queeeê?

Primeiras reações que temos, quando caímos em si, é a compaixão. Ainda acelerados, passam vidas como flashes em nossos pensamentos. Lilly foi minha vocalista por muito tempo. Adorava quando eu tentava dedilhar uma música de Roger Hodgson, Lovers in the Wind. Curiosamente, a letra começava com “time is always in the run, we’ve only just begun…” (a vida está sempre correndo, nós apenas começamos). Ela subia no meu colo e uivava com bom afino. E olhe, isso já tem mais de uma década corrida…

Hoje, na dela, quase sempre esquecida no tempo por mim, Lilly tem bem menos pressa. Cada dia a mais vivido por ela, das rondas pelo quintal, das sonecas no gramado, das passadas no galinheiro, dos rosnados para proteger sua ração, é um dia a menos para ela. Correr não só dói, mas acelera o final, faz passar cada momento mais rápido. E pra quê!?

Exatamente quando o tempo (escasso) torna-se o que há de mais valioso na vida da gente. Cada segundo corrido, é um segundo a menos! Lilly tem ciência disso e, com o silêncio dela, assim como da minha avó Dair, prefere não interferir e respeitar cada qual no seu tempo. Quem quiser parar um pouco, até para sacar essa máxima, que não justifica correr mais quando alcançamos uma certa idade, que pare.

 

Ai de mim se ela não tivesse me provocado agora pela manhã. Não iria sacar que estou próximo a entrar na tal “melhor idade” e que o tempo, cada vez mais, é muito e muito mais relativo.

 

P.S.: Relevem os “desafinos” meus no teclado. Além de eu ser ruim, tentando tirar a música, ainda me desconcentrava com a afinação da Lilly.

* Fernando Martins é   produtor audiovisual, fotógrafo e podcaster

NS
José Sana, jornalista, historiador, graduado em Letras, nasceu em São Sebastião do Rio Preto, reside em Itabira desde 1966.

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