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Doença reincidente no cérebro

A história revela que o uso de diversas substâncias psicoativas acompanha a humanidade desde tempos remotos, integrando práticas culturais, espirituais e sociais. Entretanto, ao refletir sobre esse percurso histórico, percebe-se que o consumo dessas substâncias deixou de ser apenas um hábito e passou a configurar um fenômeno complexo que ultrapassa o ato isolado de consumir, manifestando-se como a doença denominada dependência química.

A Síndrome da Dependência Química envolve dimensões biológicas, psicológicas, sociais e culturais profundamente interligadas, exigindo uma compreensão ampliada de seus impactos na vida do indivíduo e da sociedade. A dependência química — reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1964 e, no Brasil, em 2006, como doença que afeta o cérebro ao alterar os circuitos de recompensa, memória e tomada de decisão — é classificada entre os transtornos psiquiátricos e evidencia-se como um processo que afeta o corpo, a mente e as relações sociais. Apesar desse reconhecimento, ela ainda é cercada por estigmas e preconceitos que comprometem o exercício pleno da cidadania e intensificam a exclusão social daqueles que são por ela afetados.

Tipos de dependência. Drogas lícitas e ilícitas.

Diante desse cenário, é fundamental recordar que estamos tratando de seres humanos que merecem cuidado digno, responsável e fundamentado na compreensão de que a dependência química é uma doença. No entanto, observa-se que muitos desses indivíduos continuam sendo marginalizados, excluídos pela sociedade e, muitas vezes, até pelos próprios familiares, que desconhecem a natureza da enfermidade e seu poder devastador. Essa exclusão intensifica o sofrimento e compromete o acesso ao cuidado, agravando desigualdades históricas e ampliando barreiras para a reinserção social.

Nesse contexto, percebe-se que a perda da cidadania constitui uma das dores mais profundas vivenciadas pelo dependente químico. A exclusão social o coloca em condição de não pertencimento, impedindo-o de acessar plenamente direitos humanos fundamentais, especialmente quando lhe são negados vínculos familiares, moradia, trabalho e saúde.

A invisibilidade social do dependente químico configura uma marca de conotação negativa que o marginaliza em diferentes espaços. Entre as consequências, destaca-se a internalização do estigma, que provoca isolamento, deterioração da qualidade de vida, intensificação do preconceito e perda de acesso a oportunidades de tratamento adequado. A vergonha, a desvalorização e a exclusão passam a estruturar sua percepção de si mesmo, pois o sujeito incorpora a visão negativa que a sociedade lhe atribui.

A exclusão social do dependente químico

Diante desse cenário — reconhecendo que a dependência química é uma doença que também acomete os familiares —, existem grupos de auto e mútua ajuda, como Alcoólicos Anônimos (AA), Narcóticos Anônimos (NA) e, desde 1984, a ONG Amor-Exigente (AE), que atua no Brasil oferecendo apoio e orientação aos familiares de dependentes químicos e às pessoas com comportamentos disfuncionais decorrentes do uso e abuso de álcool e outras drogas.

Concluir esta reflexão implica reconhecer a dependência como uma doença, ter um olhar mais humano, capaz de perceber que o sujeito perde, pouco a pouco, o domínio sobre sua própria vida, vendo sua existência ser fragmentada. Sob essa perspectiva, acolher, tratar e intervir de modo responsável deixa de ser uma escolha e passa a ser uma exigência ética.

Entretanto, a realidade brasileira revela que políticas públicas voltadas à prevenção, ao cuidado e à informação ainda caminham aquém do necessário. A violação dos direitos humanos acompanha a trajetória do indivíduo acometido pela dependência química e se intensifica em um cenário marcado por desigualdades. Em um contexto no qual o uso de substâncias cresce e os danos se ampliam, torna-se urgente rever nossa forma de olhar, sentir e agir. Construir políticas baseadas em evidências científicas, centradas no cuidado integral e na cidadania plena, é um passo vital que só se sustenta quando nasce de um compromisso coletivo com a dignidade humana.

Tipos de dependência. Drogas lícitas e ilícitas.

Reorganizar dispositivos de atenção não é apenas uma demanda técnica: é um gesto humano que reconhece o outro como sujeito de direitos. O debate sobre dependência química, portanto, precisa acolher múltiplas vozes — a ciência, a filosofia, a política, os profissionais, os familiares e, sobretudo, os próprios usuários. Só assim é possível reconstruir sentidos, superar preconceitos e transformar a forma como a sociedade se relaciona com essa realidade.

Fortalecer os direitos humanos constitui um caminho essencial para repensar as políticas públicas sobre drogas. Compreender a relação entre sujeito e substância a partir da realidade social implica reconhecer as desigualdades produzidas historicamente. Nesse percurso, a conscientização, o acesso à informação e a mobilização social tornam-se pilares que sustentam mudanças profundas.

Superar essa realidade exige mais do que ações institucionais: requer uma mudança de paradigma. É preciso trocar o julgamento pelo acolhimento, a punição pela escuta, o estigma pela humanidade. Reconhecer a dependência química como doença — e não como falha moral — é restaurar o valor do sujeito e reafirmar seu direito à cidadania. Afinal, quem enfrenta a dependência carrega não apenas feridas físicas, mas o peso do preconceito e da invisibilidade. Romper esse ciclo demanda coragem moral, sensibilidade social e compromisso ético com cada vida que pede reconhecimento. E é nesse compromisso que se funda a possibilidade real de transformação de uma vida digna com pleno direito a sua cidadania.

 

Sônia Rodrigues de Souza

Coordenadora do Grupo Amor Exigente de Itabira

Graduanda em Psicopedagogia

Sônia Rodrigues de Souza
Sônia Rodrigues de Souza é Terapeuta holística e conselheira em toxicodependência, palestrante, professora no Curso de Formação de Conselheiros em Dependência Química no Exército Brasileiro, coordenadora do Grupo Amor Exigente de Itabira.

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